quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Comecei a escrever como um afogado que se agarra a um galho de árvore às margens de um rio. As águas que me sufocavam era o desejo, o medo, a culpa e a raiva. Incontroláveis, esses sentimentos me assolavam. Em 2008 já compreendia isso. Assim me expressei em "Mordida da Gata" para meu filho:


Aos borbotões 
ejaculam de mim 
raiva, desejo e medo
 
Posso controlá-los? 
ao menos sei 
posso sentí-los  


E meu filho 
que me quer mãe 
a tocá-lo 
ressente-se 
da mordida da gata 
que afasta o filhote
 
Escuta meu filho 
quanto plantei 
em mim 
essa raiva 
esse desejo 
esse medo 
você ainda 
não estava na história 

Chora não meu filho 
a enchente passa 
no seu lugar 
ficarão águas tranqüilas


Quando era capaz de chegar à superfície de minha existência apresentava uma identidade flutuante, uma cortiça sobre as águas avassaladoras figurada pelos alteregos alheios. Vitima de uma culpa insondável cedia a qualquer autoridade que me parecesse  consistente. Uma amálgama de personas que soterravam minha essência.
Isso não se dava sem dor. Me afligia viver uma vida inteira ao sabor desses sentimentos avassaladores. Sabia que se não me afirmasse como pessoa minha história  seria apagada. Então passei a escrever.
Aspirava com a escrita extrair de mim as dores insanas. Sondá-las no papel me fazia crer que eu tinha controle sobre elas. No branco do papel minhas escrituras pareciam arrancar das mãos da morte a chave do esquecimento.
Troquei a culpa e a falta de identidade pela criação literária.
Foi Nietzsche  que disse, em " O Saber Alegre", que "toda a arte e toda a filosofia podem ser consideradas como remédios da vida, ajudantes do seu crescimento ou bálsamo dos combates: postulam sempre sofrimento e sofredores".
A cura é visível. Apesar da sombra de biografias como a de Virginia Woolf e de Sylvia Plath, com toda sua poética do suicídio, acredito que o papel da escrita, assim como o papel da arte, deve se servir a vida e não à morte. Portanto acredito na autenticidade da cura que vivencio.
Tenho desfrutado do prazer da escrita como quem degusta uma iguaria. Agora resta saber se minhas escrituras alcançarão a imortalidade uma vez que que vivemos tempos em que os mecenas suplantam os literatos. Ser lido está fácil, com a mídia dos blog e dos sites de literatura. Publicar no entanto, é um poder que não se arranca fácil das mãos das grandes editoras.
Contudo eu acredito na força da palavra.  É Barthes que afirma que a "palavra, nós a embalsamamos, como uma múmia para fazê-la eterna. Precisamos durar um pouco mais que nossa voz, para a comédia da escritura inscrever-se não se sabe onde."
Tenho comparado biografias, investigado histórias, consultado leitores e me convenço cada vez mais que qualquer história é digna de ser contada. E nada mais fácil que contar uma em que eu fui a personagem. 
Minha narrativa é rica de uma onisciência que eu não possuía no passado. Há também um certo gosto por palavras polissêmicas que adicionam sabor às minhas escrituras. Os leitores que o digam.
Caminho essas novas sendas saltitante como uma menina a quem pediram para colher flores. Sigo dizendo não aqueles seres descritos em "Torque" :



Esses seres ascéticos do meu mundo
Querem por minha alma num torno
Como não posso ser sozinha
Vou seguindo e me tornando

Ainda digo não a isso
e tiro todos de mim
vou ser feliz sozinha
apascentar sonhos e flores

Norma de Souza Lopes


quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

DIGRESSÕES PASTICHES


Por mais que eu goste de escrever sempre esbarro nessa incompetência para  narrativas interessantes. Me limito a uma digressõezinhas mal construídas e acho que só sou capaz de contar histórias em que eu mesma sou personagem. E minha história é chata pra burro.  
Fico me perguntando se essa volição não é mais uma faceta dos meus vícios. Se for, pelo menos é mais barata que comer ou comprar. Mas não vamos ser injustas - primeira pessoa do plural, não dava para fazer uma frase elegante sem ela- Também gosto muito de ler.  Acabei de degustar uma releitura de Shakespeare que  o Veríssimo fez e o narrador era um papagaio francês. 
Haja criatividade para isso. Cada parágrafo  de digressão do tal do perroquet vale mais que uma página inteira do meu blog. O danado do papagaio se diz ausente no discurso mas passa 147 páginas nos divertindo enquanto conversa com um gravador.
Até a morte conta histórias melhor que eu. O Markus Susak conseguiu colocar a morte contando a história inteira de uma menina alemã. 500 páginas, 4 anos de história tendo o nazismo como pano de fundo. Ainda assim deliciosa, leve e divertida.
E eu aqui tentando contar a história de um desmemoriado. Não consigo fazer a droga da história sair das 25 páginas. Tentei fazê-la virar conto mas desisti. Todo dia amanhece na m... da história. Grande demais pra conto, pequena demais pra romance. Só de raiva vou deixar ela amadurecendo pra ver o que é que vira - ou mofando:    como queiram. 
Em poesia me expresso melhor. Já havia dito em "Descontar";



O que há de peculiar
em minha história
que a faça digna
de ser contada?

Mulheres já foram
excluído já foram
tímidos já foram

Não vejo nada acenar
que faça minha história mais bela
que a de Carlos Drummond de Andrade.

Sigo publicando minhas digressões pastiches e esperando agradar a pelo menos dois leitores do recanto por que esse blog parece um cemitério. Só recebe visita em dia santo.

Norma de Souza Lopes


Invídia


Atendia pelo nome de Virgílio.
Desde moço seu pai o estimulara a competir e a destruir seus adversários. Era existir e sobreviver. Tinha que ser sempre o vencedor. Se não vencesse sentia-se menor do que os outros. O pai o fazia sentir-se assim.
Era comum vê-lo desgostoso quando alguém alcançava grande sucesso ou felicidade. Achava que o vitorioso havia invadido o seu território. Desejava se apropriar da alegria do outro, arrancá-la dele. Era tomado por um sentimento de raiva e de ira por que sentia-se merecedor das conquistas alheias.
No começo ele não identificava a inveja. Era sempre aquela sensação indiscriminada de dor e humilhação por que o seio da mãe era pleno de leite, por que o irmão mais novo estava recebendo mais amor, por que o vizinho tinha um brinquedo que ele queria... 
Depois percebeu que esse era um sentimento malévolo e pouco aceito por todos. Estão passou a dissimulá-lo e mascará-lo em suas ações.  Escondia sua natureza invejosa. O esforço que despedia para esconder tal mazela da alma era tanto que vivia doente e estressado. 
Simulava ter uma individualidade. Fingia ser alguém centrado  e resolvido. Mas não era autêntico. Era inapto para ver sua própria incapacidade e inércia. Os outros a sua volta também. Às vezes era cercado por um séquito de admiradores que, por  medo de retaliações ou simples associação maldosa, apoiavam o massacre ou o escárnio exercido por Virgílio.
Se vangloriava, enaltecia-se, falava excessivamente bem das próprias coisas, pois assim abrandava o mal-estar do desequilíbrio, procurando diminuir o outro através de crítica. Não percebia, muitas vezes, as suas frustrações. Era como se elas não existissem.
Achava difícil suportar que o outro tivesse alguma coisa boa. Era comum encontrar sempre uma razão para duvidar daqueles que estavam à sua volta com o objetivo de derrubá-los. O exercício, comum a todos, de seguir modelos vitoriosos não funcionava com ele. Não conseguia encontrar o que elogiar, ou valorizar nos outros. 
E pior, podia ser voraz e antropofágico quando queria que suas idéias vencessem ou quando invejava a inteligência e a tranquilidade de outros. Punha-se a criticá-la até que elas perdessem a calma. Sempre atingia seu alvo.
Estava sempre provocando e escarnecendo. Quando a patologia chegava aos extremos, chegava a praguejar, desejando ao invejado as piores desgraças. Passava o tempo boicotando, fofocando e  preparando armadilhas, a fim de destruir os outros, para provar para si mesmo que era melhor. 
Mas toda essa violência não passava impune. Em pouco tempo ficava cercado de inimigos. O grupo de seguidores, não suportando ser também vitimas da inveja de Virgílio, acabavam arrefecendo e o abandonando. 
Então ele começava a se isolar. Em casa ficava fechado no quarto e no trabalho abraçava tarefas árduas, que tomassem todo o seu tempo. Começava a construir formas de trocar os espaços de convivência até conseguir.
E quando finalmente conseguia um habitat diferente, começava tudo de novo.


Norma de Souza Lopes


terça-feira, 28 de dezembro de 2010



Transformando sementes em árvores


Eu falava outro dia, na crônica "Maluca Menina Veneno"  sobre a confiança que tenho de que o que eu falo ou ensino possa vir a mudar a trajetória de meus alunos na direção do bem. Chamei  isso de  "lançar sementes".


Curiosamente, lendo um livro do doutor Leonard Felder chamado "Fora do padrão: um guia de sobrevivência para os que se sentem diferentes" encontrei uma bela história que ilustra bem o que é lançar sementes nesse  contexto.
Doutor Felder conta sobre Desmond Mpilo Tutu, um bispo da Igreja Anglicana, consagrado com o Prêmio Nobel da Paz em 1984 por sua luta contra o Apartheid na África do Sul. 


Leonard Felder conta que durante a cerimônia de entrega do Nobel alguém do público perguntou ao bispo Tutu: "Por que você escolheu tornar-se padre da igreja anglicana, a qual é composta por pelas mesmas pessoas que fazem parte da opressiva classe dominante?" Ele então responde: " Isso é muito fácil de responder. Quando eu era uma jovem criança, vi um homem branco tirar seu chapéu para uma mulher negra. Por favor, entenda que tal gesto era completamente extraordinário em meu país. O homem branco era um bispo anglicano e a mulher negra era minha mãe." Isso aconteceu nos aos 40, quando a África era esmagada pela segregação racial.


Felder PhD assim comenta o fato:


" É  possível que um breve momento sincero de abertura de seu coração - uma ato tão simples quanto demonstrar respeito genuíno a um estranho - possa tornar-se uma inovação que mude a vida não apenas de uma família, mas também de uma sociedade? Isso leva você a se perguntar sobre quais impressões involuntárias estamos criando a cada dia pelo modo como tratamos os estranhos que encontramos, ou mesmo pelo modo como tratamos um amigo ou um familiar que está se sentido sozinho "


Posso responder a essas perguntas dizendo que me empenho em produzir impressões generosas para meus alunos por ter vivido algo semelhante em minha própria pele. Essa história nos mostra que um gesto tão simples como tirar um chapéu pode levar um homem até o Prêmio Nobel.


É quando sementes viram árvores.


Norma de Souza Lopes

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Não há maior demonstração de fraqueza que as exibições gratuitas de força.


Norma de Souza Lopes
Obrigado Ano Velho

A muito deixei de me preocupar com planejamentos de Ano Novo. Aquela infindável lista de coisas que eu não conseguia realizar, piscando nas primeiras páginas da agenda me constrangiam o ano todo.
Mais do que esperar o próximo ano, eu quero agradecer a vida pelo caminho que ela me levou a percorrer em 2010. Foi literalmente um ano de vitórias. Não em decorrência do dinheiro que ganhei, da influência que exerci ou da aceitação que recebi. Falo da vitoriosa experiência que empreendi, mergulhando em mim mesma esse ano.
Nesse ano aprendi coisas tão importantes que, acredito piamente, mudaram meu jeito de existir pelo resto de minha vida.
A primeira delas é que tudo que meus sentidos percebem  é impermanente. De nada adianta querer agarrar o amor, a alegria, o sucesso ou a satisfação de todo dia. Isso irá passar. Mas é bom saber que toda tristeza, medo, raiva, mágoa, rejeição também é impermanente. Não dura. 
Com isso passei a me perguntar a todo momento se as emoções avassaladoras me invadem ocasionalmete serão importante na semana que vem. A resposta quase sempre é um sonoro não. Passei a aceitar o caráter impermanente de tudo. Isso me encheu de paz esse ano.
A segunda coisa que aprendi é acalmar minha mente lembrando que sensações são hormônios correndo dentro de mim. O frio na barriga, a dor no peito, os olhos lagrimejantes não são meu jeito de estar no mundo, são o meu corpo, respondendo biologicamente aos estímulos externos. Posso escolher responder a esses estímulos ou simplesmente deixá-los voltar ao seu lugar de origem, o sistema nervoso central. Não sou mais uma refém de minhas emoções e sensações. Eu escolho como me sentir. Eu escolho se vou mergulhar ou não na onda das sensações que me invade a cada evento novo que vivo. 
Se nas interações com as pessoas sou invadida pela raiva e percebo a corrente hormonal em mim, respiro e espero que ela passe. Nada daqueles rompantes irados do passado.
Se nas mesmas relações sinto humores alegres, afetivos e amorosos me invadir, pergunto se estou lendo corretamente o ato. Se a leitura estiver correta, me deixo sorrir ou gargalhar, devolver afetos, amar meus amigos, cuidar de meus familiares. Mergulho nessa onda de sensações. Eu escolho sentir.
Ainda vacilo às vezes e embarco em sensibilidades falsas ou desnecessárias. Nada mais do que circunstâncias de aprendizagem, importantes para o meu crescimento.
A terceira coisa que aprendi é que a autocomiseração é uma bigorna que me prende ao pior de mim mesma. Não dá para continuar me arrastando pela vida com essa colossal pena de mim mesma.  
Decidi mudar. E esse tem sido o maior desafio. 
Entendi o problema, mas meus mapas mentais são tão arraigados que a todo momento volto a velha forma de pensar: a auto piedade. Aguardo os progressos da mudança de paradigma na minha mente para os anos seguintes. Mais já me alegro com os sinais. Quando sou capaz de dissipar a autocomiseração e os melindres tenho mais sucesso em minhas empreitadas.
A quarta coisa que aprendi esse ano é que por mais que eu tente combater a sensação de fragmentação e de vazio interno, ela não vai me abandonar. Foi gerada quando saí do ventre de minha mãe. Lá eu estava segura, alimentada  e feliz. Era uma unidade. Ao nascer fui jogada nesse mundo, continuamente cindida de minha mãe, de seu ventre, de seus seios, de seus cuidados, e finalmente de seu aconchego. 
Mas nascer também foi a fundação de mim mesma. Posso conviver com essa cisão e me recriar continuamente. Construir minha individuação e me orgulhar de meus feitos independentes. Ser eu mesma implica em não passar a vida perseguindo aconchegos e fusões com outros seres. Cabe a mim caminhar com os outros (filhos, familia, amigos, amados, colegas) apenas como companheiros  de viagem, não como partes ou metades de mim. 
A quinta e talvez mais importante coisa que aprendi nesse ano de 2010 é que o verdadeiro "Eu" que abrigo em mim não é essa personalidade ou esse caráter aparente nas minha ações de todo dia. Essas são apenas as máscaras que exibo socialmente.  
É engraçado pensar que me alegro por descobrir quem eu não sou. Mas existe ganho real nisso. Não perco tempo tentando provar o que sou ou me associando a  alteregos alheios.  Estou numa jornada tão profunda e íntima que a cada dia descubro pérolas em mim. E a maior delas, a mais vibrante, é a  presença de Deus em meu interior, influenciando minha maneira de existir.  
Por tudo isso só posso agradecer o Ano Velho e esperar que eu possa consolidar minhas aprendizagem em 2011.

Norma de Souza Lopes

domingo, 26 de dezembro de 2010

Meu filho enquanto lavava a louça e observava uma daquelas conversas barulhentas da familia: " familia reunida, tomara que não dê briga. "
Carol


Neste natal comecei a experimentar as avalanches de ciúmes que envolvem as mães quando os filhos crescem. Também experimentei o constragimento de esquecer de fazer uma homenagem a minha filha mais nova. Uma gafe sem precedentes.
Todas as familias experimentam problemas na hora de escolher onde irão celebrar os festejos. Mas as configurações da separação que acontece nas festas de fim-de-ano entre mim e meus três filhos tem agravantes. Minha irmã costuma me chamar de vadia por que tenho três filhos, cada um de um pai. A observação grosseira é uma piada na família  por que na verdade tenho um filho da primeira união que durou poucos anos, tenho uma segunda filha de  minha união atual e uma terceira filha que nasceu do meu coração a partir da adoção. 
Vinte e dois anos, dezesseis anos e quatorze anos. Essas são as idades de meus filhos. É preciso explicar que a filha de quatorze faz aniversário no dia vinte cinco de dezembro e o que seria uma ceia de véspera de natal, conosco acabou se configurando como uma grande almoço de natal, visitado por todos amigos  e parentes, durante todo o dia. E algo parecido com o que relatei na crônica "Domingo na casa da mãe".  
Neste ano a casa cheia de gente não escondeu a falta de meu filho de dezesseis. Ele escolheu passar o dia com o pai e com os tios. A filha  mais velha foi à noite festejar com a família do namorado. Argumentei comigo que talvez essa também seja sua familia daqui para frente. Ela precisa aprender a conviver com eles. (Mais que droga, porque eles não escolheram vir para cá também?)
Meu filho voltou contando belas histórias do encontro. Lembranças e conversas intimistas. Senti ciúmes até das lágrimas que eles derramaram juntos. Até ano passado consegui mantê-los compulsoriamente comigo nas festividades. Esse ano os namorados, pais e parentes foram mais fortes. 
O pior é que eu, que sou apaixonadas por homenagens, esse ano me esqueci de preparar uma para a filha que ficou. Na clássica hora da oração chamei meu irmão para puxar e ele declinou. Assumi a ministração, fiz uma bela introdução, elogiando a meiguice  de minha filha e a representatividade do natal quando a irmã incoveniente gritou:
_  Não acredito que você não fez uma homenagem escrita para a Carol.
Só então me lembrei _ Que furo!_
Eu lá, toda emocionada e ela me olhando com aquela cara de "Eu não acredito mamãe!". Olhei para ela e adivinhei o que estava sentindo. Uma mãe que se diz poetiza, cheia de inspirarão, só servia para as pessoas de fora da família nuclear.
Sei que não há desculpas para isso mas a circunstância me valeu para ver minha a filha maravilhosa como ela é. Em fração de segundos a vida dessa filha que  ainda celebra comigo o natal passou diante de mim. Me lembrei que ela passou grande parte de sua infância chorando, magoada com a vida. 
Eu quase sempre me  desesperava vendo aquela dor arrastar-se durante anos. Pensava que aquela tristeza não iria partir.
A dor da alma surgia às vezes como dor de tudo em sua fala:
_ Eu estou com dor de febre mamãe!
_ Eu estou com dor no pé!
A coisa era tão intensa que os turistas de uma pousada em Guarapari lhe deram o carinhoso apelido de "Ai meu pé", depois de uma semana de chororô.
Por volta dos cinco anos renunciei ao desespero e comecei a pedir, toda vez que ela chorava:
_ Escolhe ser feliz, filha!
Era só ela começar a chorar que eu disparava o convite:
_ Escolhe ser feliz, filha!
O que eu vi naquela hora da homenagem e que felizmente consegui falar foi que, graças a sua grande presença de espírito, ela  escolheu ser feliz. Se tornou uma bela moça, meiga e cheia de alegria. É reconhecida pelos amigos e pela familia como uma pessoa doce, amorosa e feliz. 
Tê-la sempre ao meu lado, lendo meus escritos, acreditando que serei uma grande escritora, dizendo que irá ficar rica para cuidar de mim é um bálsamo para minha alma.
Escrevo essa crônica um pouco para me redimir de meu esquecimento e para agradecer a presença de minha filha nesse natal.
Eu também acredito em você Carol. 
E estou certa de que mesmo não sendo rica sempre cuidarei de você. Mesmo quando você também for curtir seus natais em outras paragens.


Norma de Souza Lopes



Meditação de Férias ou férias da meditação


Há alguns meses tenho tentando meditar. Tive sucesso nessa tarefa  enquanto estava trabalhando. Uma musiquinha de relaxamento, a  luz fraca das cinco da manhã, penetrando nos vidros azuis da minha sala me ajudaram a suportar dias tenebrosos de labuta. No entanto sempre ficava aquele gostinho de quero mais. Pensava que quando minhas férias chegassem meditaria todo dia, por muitas horas. 


Não é isso que aconteceu.


Assim que anuncio que minha mente deve acalentar-se  inicia-se o desfile. Uma gigantesca cadeia  de pensamentos passam diante de mim. Me lembro da descrição de Liz Gilbert em Comer, Rezar Amar e a certeza de que não sou a única me consola. 


Veja: 


"Como a maioria dos humanóides, tenho o fardo a que os budistas chamam mente de macaco - os pensamentos que passam de ramo em ramo, parando apenas para se coçar, cuspir e gritar. A minha mente oscila entre o passado distante e o futuro incognoscível, aflorando dezenas de ideias por minuto, desembestada e indisciplinada. Isto em si mesmo não é necessariamente um problema, o problema é a ligação emocional que acompanha o pensamento. Os pensamentos felizes, fazem-me feliz, mas com rapidez passo outra vez à preocupação obsessiva e ao mau humor; e depois vem a recordação de um momento de raiva e começo a ficar irritada e aborrecida outra vez; depois, a minha mente decide que talvez seja boa altura para começar a sentir pena de si mesma e a solidão depressa aparece."


Preciso lutar muito para que minhas meditações não tenha o fim descrito por Elizabeth. Venho pesquisando para aprender a conter os tais macacos. Li outro dia num site de gnose que podemos parar os pensamento dando  um exercício insolúvel para a mente. 


Que tal imaginar que a beira de um abismo há uma arvore e que essa árvore lançou para fora do paredão uma enorme raíz. Se quiser ocupar sua mente basta informá-la que há um homem pendurado nessa raiz e que é preciso achar uma forma de tirá-lo de lá. 


O curioso é que esse exercício, ao invés de domar minha mente, me faz rir tanto que acabo tendo que renunciar à meditação. O que acontece é que eu não aceito a proposta de "insolúvel" descritas pelos gnósticos. Eu me vejo às bordas do abismo, empunhando uma corda para salvar o tal homem. Me pego conduzindo um helicóptero para resgatar o dependurado. Só que "eu", essa pessoa que medita, não deveria estar lá. Eu deveria estar fazendo aquilo que venho tentando desde sempre: meditar.


Como esse meu mar não está para peixe vou fazer o que todo mundo faz quando está de férias em casa, sem posssibilidade de viajar. Vou comer, ver belos filmes, ler, escrever e dormir. Minha mente já está de férias


Deixo a meditação para quando realmente precisar dela. Na volta ao meu enlouquecedor mundo do trabalho.


Norma de Souza Lopes

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

REJEIÇÃO


Magno era seu nome.  Tinha nome e pose de imperador. 
Vaidade era seu segundo nome. 
Um pavão. 
Seu expertise flutuava no vácuo. Mesmo sendo perfeccionista só produzia quando seu trabalho fosse evidenciar a incompetência ou incompletude dos outros. 
A energia vibrante de suas sacadas, a  linguagem muito bem amarrada e a capacidade de traduzir em palavras qualquer cultura ou circunstância obscura do ambiente em que circulava era usada unicamente para satisfazer seu um narcisismo arraigado. Extraía benefícios práticos e emocionais de todos a sua volta, muito em função de seu egoísmo. 
Gostava de estar rodeado de pessoas. No seu habitat sempre havia risadas e alegria. Parecia alegre. Se elogiava e se enaltecia em toda frase que dizia. Mas observando atentamente percebia-se que no fundo tinha um péssimo juízo de si mesmo. 
Era indisciplinado, intolerante com as contrariedades e as dores da vida mas gastava toda sua energia para dissimular sua tristeza, suas fraquezas e suas falhas de caráter. Nas situações de conflito é que sua verdadeira personalidade surgia. Ficava descontrolado, trêmulo, agressivo e esmagava com crueldade o adversário .  
A principio sua luminescência fez com que Sônia o amasse. Se sentia  impressionada com todo aquela força e poder. Só conseguia ver o brilho. Felizmente ele não era muito afeito a relacionamentos e não correspondeu às investidas de Sônia. A verdade é que ele era incapaz de amar. Mas morria de inveja daqueles que eram. Amar para ele era muito perigoso. Evitava a qualquer custo as prováveis dores psíquicas do amor. 
Aos poucos Sônia foi juntando as pontas da malha de sua personalidade. Soube que ele, no passado, tivera relacionamentos em que era profundamente ciumento. Talvez por reconhecer sua falta de qualidades para ser amado.
Sônia foi tirando conclusões. A rejeição gerou um certo despeito. Ela tinha que separar isso para ter impressões reais e desinvestir emocionalmente.Seguiu observando. Por fim soube que tinha ganhado. Se aquela relação tivesse vingado  representaria um grave risco psicológico. Teria esmagado sua autoconfiança recém conquistada.
Ficou sozinha e feliz.

Norma de Souza Lopes

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

MALUCA MENINA VENENO


A escola teve papel fundamental na constituição do meu caráter. O que eu escolhi ser e o que eu desisti de ser se deve a maior parte das experiências que tive na escola. Eu era a mais velha de três irmãos e isso tinha implicações importantes.
A separação de meus pais culminou em inúmeras mudanças e fatalmente no atraso escolar.  Eu e meus irmão éramos sempre os mais velhos da classe. A infância não era grande coisa com toda aquela pobreza mas nós gostávamos e  queríamos ser mais velhos. Assim podíamos trabalhar e comprar o que a mãe não podia dar. 
Ser mais velha na quarta série me fazia ir para a escola de saltos altos, usar batons vermelhos cintilantes. Daí para os apelidos era um pulo.
Meio-quilo-de-batom.
Menina veneno.
O segundo apelido ganhei por dançar musicas do Richie no recreio, na quinta série. Era o meu momento de brilhar. Eu conhecia bem a coreografia e a escola fazia rodinha para assistir. Mas a maravilha eram os alunos da oitava série fazendo fila para pedir meu autógrafo. 
Demorei anos para entender a piada.
Em tempo de denúncia ao bullying me constrange dizer que eu era vitima e algoz em meus tempos de fundamental. Mas não havia como ser de outra forma. Éramos feios, magros, sem pai e não muito brilhantes. A escola não era nosso melhor habitat.
Só sobrevivemos àquela selva porque nos comportávamos como malucos. Aliás esse era o meu apelido na sétima série.
Maluca.
Eu e meus irmão reagíamos aos ataques cruéis daqueles que adolesciam conosco. Lutávamos como ensandencidos.  Estávamos nas brigas da porta da escola com pedras, paus ou  tchacos, gritávamos e batíamos em tudo e em todos para demonstrar força e sermos reconhecidos. Era o que tínhamos. 
Isso funcionou bem enquanto estivemos os três juntos. Sozinha e em outra escola tive que construir outras estratégias.
No começo do ensino médio estava tão deprimida que ninguém se aproximava. Era sempre o chororô na sala da orientação. Isso até a velha Norma briguenta reaparecer. Eu agredira um insignificante que passava tampinha no quadro para irritar a turma.
Me deram o ultimato. Eu teria que mudar.
Num ato de solidariedade e amor à profissão meu professor de biologia me indicou uma amiga psicanalista e isso de certa forma mudou os rumos de minha vida.
Procurei-a na semana seguinte. Se chamava Izabel. Um menina de 26 anos, miúda e amorosa me ensinou que eu poderia arrancar a minha dor, olhá-la profundamente e guardá-la onde ela não doesse mais. Eu, que  usava todo o salário de babá para pagar as sessões, deixei de querer parecer adulta e me tornei adulta. Ela me fez entender que o céu era o limite. Eu poderia ser o que escolhesse ser. Escolhi ser pedagoga.
Voltei para dentro da escola para me redimir e me curar de toda violência que impingi e sofri. Dos tempos de "Maluca" trago uma certeza. Evito usar a força para me proteger e acredito que como professora, a qualquer momento, posso estar dando aquela palavra que mudará a vida de meus alunos.
É como lançar sementes.

Norma de Souza Lopes



terça-feira, 21 de dezembro de 2010

De férias

Agora que estou de férias experimento essa gana de escrever. Sinto um prazer indizível em escrever tudo que me vem a cabeça.  Contudo esse prazer, assim como um passeio de compras,  se esvazia logo que concluo o texto.
Então sou invadida pelo desejo de saber se alguém leu, se gostou. Fico observando as estatísticas e imaginando quem estaria por traz daquele pequeno número de visualizações. Será que leram realmente? 
A pergunta procede porque eu mesma abro inúmeras páginas de blogs e as fecho indiscriminadamente quando não encontro o que quero. No entanto pensar que alguém faz isso com minhas escrituras me aflige.
Um pensamento me ocorre nessas ocasiões: "Vale a pena escrever. Já há tantos escritores por aí. Será que haverá leitores para tanta literatura que as editoras, a  NET e os blogs estão lançando nos espaços e ciberespaços? Ainda me cabe nesse universo?" 
Já disse em poesia que escrevo para arrancar das mãos da morte a possibilidade de que me esqueçam, mas não me iludo. Minha obra precisa ser notável para ser indelével.
Não que a escrita me sirva apenas a interesses narcisícos. Existe também uma função terapêutica em tudo que escrevo. Uso transgredir minha realidade jogando com palavras e imagens poéticas. É a  minha maneira de redesenhar medos,  tristezas e alegrias cotidianas. 
Não obstante posso concluir que desejaria ver minhas escrituras pagando para que eu estivesse sempre de férias, escrevendo...

Norma de Souza Lopes



Céu da boca

Sempre fico perplexa diante das perguntas de meu  filho de dezesseis anos. Ele quis saber qual seria a sensação de um beijo em que a língua toca no céu da boca. Assim é meu filho, uma metralhadora de perguntas. 
Porém há coisas que não se pode explicar. Mesmo que eu descrevesse a taquicardia, o ardor do sangue nas faces, o calor pelo corpo,os calafrios, as contrações no estômago ainda assim não seria a descrição total das sensações de um beijo de língua. A soma das partes ainda não seria o todo. 
Eu poderia simplesmente contar que  Freud, o cara que criou os milhares de empregos para psicólogos em todo o mundo,  associava as sensações do beijo às impressões primitivas que tivemos quando mamamos pela primeira vez. Ou seja, trata-se de repetir uma peversãozinha que tivemos quando erámos bebês. 
Quando elaboro minhas respostas o faço como mãe que gostaria de  prever seus caminhos e descaminhos, prepará-lo para as mais diversas experiências com as quais ele vai se deparar. Mas numa circunstância como essa o esforço  é muito para mim. Não deu para explicar o que se sente quando beijamos.
Preferi mandar ele ir viver.

Norma de Souza Lopes

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

     IMPLANTAR  ξ   DESMATAR


                           
                SEMENTE


                   CIMENTE


                      SOMENTE


                          MENTE


Norma de Souza Lopes
  
Devemos cuidar de nossas amizades com o zelo de uma rendeira nordestina.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Papai Noel morreu

Bem jovem descobri que São Nicolau foi usurpado para virar  uma das estratégias comerciais da Coca-Cola. Como comecei a trabalhar na adolescência não esperava o vetusto com meias atrás das portas porque  eu mesma comprava meus presentes. Talvez por isso preferi crescer cantando o "Papai Noel velho batuta"  dos Ratos de Porão. 
No entanto isso só durou até meus filhos começarem a pedir que eu enviasse cartas ao velhinho. Como pedagoga eu já havia aprendido que ninguém deve tirar de uma criança sua capacidade de fantasiar. Tornou-se imprescindível para mim esperar acordada com eles a chegada do Papai Noel, ver sua vigília frustrada pelo sono e principalmente me alegrar com eles ao encontrar os presentes no dia seguinte. Dividir isso com meus filhos me reconciliou como ancião escarlate.
Mas o fato mais significativo para minha reconciliação com esse símbolo natalino foi a existência de um senhor bem idoso que em nosso bairro fazia às vezes de Papai Noel. Todo natal ele saída distribuindo balas e pequenos presentes para as crianças da redondeza. Ele não se furtava a nada. Era um Papai Noel completo,  com vestes, barba e saco de presentes. Era interessante vê-lo perguntando a todos se eles haviam se comportando bem. Mas era sublime ver os pequenos contando seus pequenos furos de comportamento e prometendo se comportar melhor.
Com o passar dos anos a quantidade de presentes foi aumentando. Os donos de padarias, supermercados e lojas contribuíam  para que mais crianças recebessem presentes. O que antes eram uma distribuição de quarteirões passou a ser uma partilha de bairro inteiro. As crianças que eram beneficiadas sabiam quem era o Papai Noel e sabiam onde ele morava. Nada de pólo norte. Era comum ver crianças passando em frente a casa do bom velhinho apontando-a como a casa do Papai Noel. 
Contudo a idade avançada desse senhor culminou com sua morte e as crianças do bairro tiveram que lidar mais cedo com a inexistência  do Papai Noel. O velório e o enterro foi coroado por pelo pranto de dezenas de crianças. Nós chorávamos juntos por que sabíamos do medo de todas elas. Elas temiam na verdade que o natal fosse enterrado junto com o bom velhinho.

Norma de Souza Lopes