domingo, 12 de dezembro de 2010

Outro elogio à loucura


Relendo alguns autores mineiros que amo resgatei da memória lembranças curiosas acerca de doidos que povoaram a minha infância. Não foi difícil me lembrar porque a literatura Mineira é povoada por doidos. Reli  "O Doido" e "Dodona Guerra"  de Carlos Drummond de Andrade, o "Sorôco" e sua familia de Guimarães Rosa e mesmo não sendo mineiro Machado de Assis ambientou seu   "Quincas Borba" em Barbacena. Nada melhor que a literatura para resgatar lembranças.
Me lembrei da função pedagógica que tiveram para mim os doidos de rua. Quem não escapou dos perigos da rua por medo do homem do saco, o célebre louco de rua que povoava nossos medos? 
Mas, apesar de me lembrar nitidamente desses doidos de rua que circulavam e mendigavam pela cidade, os que mais me impressionavam eram os doidos de casa. Eles apresentavam uma loucura de natureza privada, reservada e escondida pelas famílias e suas aparições eram tão espetáculares quanto as dos doidos de rua.
Enquanto morava na casa de minha avó tive oportunidade de conhecer Alba, uma moça que casualmente saía correndo pela rua, levantando a roupa e gritando as mais variadas injúrias. Alba era segredo bem guardado no enclausuramento familiar e pouco aparecia para a socialização  no palco das ruas de nossas casa.  Isso provocava a curiosidade e a maldade intrínseca à nós, crianças pequenas. Tínhamos que aproveitar suas curtas aparições para tirar o máximo de diversão: provocávamos, apelidávamos, insultavámos e depois abríamos franca carreira pela rua, rindo e temendo as pedradas fatais. Também não podíamos chamar atenção da avó. Se ela  presenciasse a cena as varadas seriam certas.
Morei pouco tempo na casa de minha avó mas a mudança de bairro não me privou dos célebres espetáculos dos doidos de casa. Em outro bairro conheci um Néia, homem velho na aparência, mas criança social e psicologicamente. Assim como Alba e para desespero da familia, Néia fugia para a rua e era cercado por uma legião de crianças. O que gostávamos nele era o grito do palavrão proibido, que ele pronunciava errado:
    ___ Daputa!
Muito comum entre nós também era aquela loucura produzida pelo alcoolismo. Sempre houveram muitos desses. Tínhamos um Senhor Delírio (quem poderia ser normal com um nome desses?) que chamava a tudo e a todos de "fudidos" e acabou ganhando o palavrão como apelido. Tínhamos o Sansão que, talvez por força do nome, fazia exibições de levantamento de carros. Outro célebre era o Sinval dos Santos (assim mesmo, com nome e sobrenome), corajoso como o quê, que dizia temer apenas que o céu descesse e que a terra subisse. Tínhamos o Zéfinim, que conversava com postes. Esses bêbados agradavam a todos. Em sua presença sempre havia uma roda de adultos rindo,  zombando e escarnecendo. 
Essas lembranças me levam a perguntar: o  que nos prende diante da loucura dessas pessoas?
Penso que a visão da loucura dessas figuras é tão satisfatória porque revela uma maneira livre de existir, mergulhada na imaginação, na fantasia ou na raiva. A visão do  louco nos sacode por dentro porque nos faz ver o insano e o instintivo livre e solto neles e nos leva a fazer as pazes com nossa loucura, tão escondida e reprimida. 
Essa loucura que conversa com poste, que xinga palavrões, que levanta a saia e revela as partes pudentas nos alegra porque se anuncia diante de nós como uma criança provocativa, que corre e põe língua por ter escapado do controle e da vigilância. O que nos atrai nos loucos  é a pureza da verdade humana: somos uma comédia, uma mentira e uma insanidade que foi controlada pela civilidade social.


Norma de Souza Lopes

Um comentário:

  1. Contundente este texto, Norma! A loucura pode mesmo ser a sanidade dos livres de quaiquer amarras sociais. Abraços. paz e bem.

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