sábado, 3 de outubro de 2015

Caruaru

Já estava em Caruaru há uma semana e tudo que tinha visto era aquela crosta que as cidades preparam para os turistas. Carmem não queria isso. Queria mergulhar entre os nativos, queria conhecer as entranhas da cidade. Conversando com o garçom do restaurante onde almoçava, contou seu interesse, perguntou por um forró de periferia. Ele citou vários, mas disse que se quisesse ver algo diferente fosse ao forró do Salgado. E foi isso que Carmem fez.


O bairro era distante, mas ela não demorou a localizar o lugar. Ficava numa baixada onde desembocavam duas ruas de terra, uma à direita e outra à esquerda. Era uma clareira cercada por angicos, onde fora construído um barracão. No primeiro cômodo, havia um balcão onde eram vendidas as bebidas e petiscos. No cômodo interior, ficava o som, as fitas cassetes e o DJ. O banheiro ficava do lado de fora. Em nenhum deles havia reboco. 

Carmem entrou curiosa no cômodo do som e observou a janela. Lá fora, homens e mulheres dançavam. Eles se vestiam de maneira simples, alguns ainda com seus uniformes de trabalho. Mas era a forma como dançavam que chamou atenção de Carmem. Um trio de homens fazia um trenzinho, de joelhos semidobrados, dando golpes de quadris no parceiro da frente, alguns casais dançavam tão colados e tão lentamente, que pareciam não ouvir a música. Encostados em um tronco de angico, um casal peculiar se beijava de maneira apaixonada. Apoiado na árvore, um índio miúdo, de camisa social e calça de tergal, era completamente envolvido pelo beijo de um negro grande, gordo e com uma vasta e lisa cabeleira, vestido de camisa polo e calças jeans. Quando interrompiam o beijo, o negro apoiava as duas mãos nas faces do índio e sorria de maneira apaixonada. 

Perto do banheiro, duas mulheres cobertas por curtíssimos vestidos de alças, também se beijavam, mas com um pouco mais de volúpia que o outro casal, uma vez que corriam suas mãos uma pelo corpo da outra.

O que em geral Carmem percebia era que pouco importava a música. Pairava sobre todos um clima hedônico que transcendia e a atingia, fazendo correr sobre sua pele uma onda voraz de desejo. Passou a olhar para o interior do cômodo.

Lá dentro, havia mesas de som, pequenas estantes onde eram guardadas as fitas e um pequeno baú. Nas paredes, ficavam pendurados objetos perdidos de toda a natureza. Uma fita rodava sem interrupção e o DJ não se encontrava no lugar. Carmem sentou-se sob uma mesa à margem da janela, apoiou as pernas sob o baú e permaneceu observando os casais lá fora, inebriada pela excitação que as cenas emanavam.

Distraída, assustou-se quando o DJ entrou. Parecia alto demais para aquele lugar, magro, barba rala, bonito à sua maneira.

— Seu colar parece muito com esse. E pegou na parede dos perdidos um pequeno colar, salpicado de pingentes. 

Não parecia tanto, na verdade. O colar de Carmem tinha apenas um pingente em forma de casa. O colar que o DJ depositara em sua mão possuía pequenos pingentes em forma de castelos, rostos, figas, pimentas, claves e folhas, entre muitos outros.

Enquanto o DJ trocava a música, Carmem levou o colar perdido a boca, e passou a mordiscar os pingentes, sem nenhuma assepsia. Ele trocara a música. Lembrava daquela letra, mas nunca havia escutado ao som de forró: 

Eu não desisto de você
Você precisa entender
Que eu não me inspiro sem você
Sem você eu não me inspiro

— Renato, meu nome é Renato — ele disse, tão próximo, que Carmem arrepiou a nuca. 

E se deu conta de que estava com o colar inteiro na boca. Como quem separa ossos de um pé de galinha cozido separava os pingentes dos elos do colar.

A presença de Renato, debruçando-se sobre ela para pegar fitas ou simplesmente para comentar algo sobre o forró, tornou-se algo tão intenso, que Carmem começou a desejar que ele a envolvesse de maneira idêntica aos casais na pista.

Depositou um por um os pingentes que havia separado na boca sobre o beiral da janela e viu que limpos pela sua saliva, brilhavam como ouro. Colocou aos pares pingentes de castelos, de rostos, de claves. Pensou em segurar um dos pingentes de rosto e dar o outro a Renato para ver se ele entendia o seu desejo. Mirou o rapaz abaixado, absorto diante da prateleira de fitas e percebeu que como tudo ali _ as pessoas, o lugar, a música _ ele pareciam fazer parte de uma unidade tão maciça, que seria impossível atravessá-la. Olhou pela janela e viu um homem arrastar um colchão morro acima, levantando poeira.

Lembrou-se de um domingo de inverno, o desejo incontrolado, os corpos em combustão. Decidiu que era hora de ir. Não do forró, não do Salgado. Era hora de deixar Caruaru e voltar para casa.

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