terça-feira, 29 de novembro de 2016

jornal da manhã

não como um bloco de nuvens
de árvores ou passos
na areia
fronteira com o mar
não é assim
que o mundo se revela

é mais como um carro anfíbio 
com esteira
uma fileira de animais selvagens
em fuga

quantas manhãs
ainda terei forças
para me arrancar do chão
esta pasta atropelada 
pelas tragédias?

sábado, 26 de novembro de 2016

só por uma noite

marquei um encontro comigo ontem
desses sem vinho, sem velas
apenas música, dedos e sussurros
cuidei de me alegrar
por compartilhar comigo
estas cidades
este século tenebroso
sem renunciar à luz
dei de mão
para espantar os fantasmas
tão mortos
mas ainda preenchendo
minha caixa craniana 


dispensei os gritos
de minha árvore genealógica
só por uma noite
você deve estar se perguntando
tudo isso, e sóbria?
sim sóbria!
ébria perco a poesia
do encontro comigo

por uma noite entendi o amor

Foto  Marc Riboud


quarta-feira, 23 de novembro de 2016

projétil

da rua, a janela
da janela, a estante
da estante, livros
e nos livros
gritos domesticados
um desperdício de revolução

câmeras automáticas

demora alguns dias
quando se aprende 
fica mais fácil
ajuda saber como começa
e como termina
só é preciso dizer sim
ao que se segue

primeiro é preciso profanar a tristeza
diante das câmeras automáticas
tecer sonhos sob o jugo cinza do céu
revisitar lugares na esperança 
de encontrar um grande amor

depois cabe abrir o ventre 
à posse indômita da paixão
(que não vem), amar 
com imensa raiva no coração
e desfiar segredos de amor 
entre os dentes

por fim deve-se sangrar os dedos 
podando roseiras estéreis 
cravar as unhas nas mãos
ceder à tração da melancolia
até atingir a posição fetal

como eu disse
só demora alguns dias
e então poderá começar
a se desenrolar
e profanar a tristeza
diante das câmeras automáticas 

domingo, 20 de novembro de 2016

o que eu queria

Para Fabrício Corsaletti

eu não queria essa vocação para amar, essa febre 
tampouco a consciência contínua 
de que não cabem três felizes 
numa história de amor

queria os gritos da matilha 
traduzindo a voz da noite
mas ainda há o medo da dor
a solidão, o silêncio, o desamor
380 kilos por polegada quadrada
é a mordida de um lobo

sábado, 19 de novembro de 2016

Converso com minha tristeza todo dia, é preciso amansá-la. Acharia imperdoável não dançar e não festejar. Tantos dos meus sucumbiram, perderam o direito a vida. . Dançar e festejar é o minimo que posso fazer pelos amigas e amigas que perderam o direito a vida por não ter nascido no lado protegido da história.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

um cavalo galopando em meu peito

dispensados os lastros do passado
coleciono abismos festivos
ainda não sei as asas
mas anseio a hora de saltar

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Para Carolina Reis


Há vinte cinco anos atrás eu costumava correr com naturalidade para o trabalho e para a escola todos os dias como se essa fosse a única vida possível. Tinha uma cabeleira vermelha e selvagem quase na cintura, arrancava todos os meus pelos de maneira dolorosa e  vestia calças jeans us top com as quais eu mal conseguia respirar e me sentia horrorosa. Cultivava namoros duvidosos, nunca tinha grana para sair, fumava um maço de cigarros por dia e achava que seria doméstica para sempre. Ainda não tinha escrito nem uma poesia, apesar de ter lido muitos livros.
Há cinco anos mantenho minha cabeleira platinada acima dos ombros, deixei de fumar, já publiquei um livro solo, tenho poemas publicados em inúmeras revistas e antologias e estou prestes a lançar outro livro. Não visto mais roupas apertadas, uso maravilhosos vestidos soltos, ensino liberdade, poesia e literatura onde passo, saio muitas vezes por semana e só amo quem é capaz de me amar como sou. Graduei, pós-graduei e apesar da minha tristeza atávica me sinto a mulher mais amada do mundo. E se te conto isso é para mostrar que dentro de uma vida cabe uma imensidão. Mulheres morrem dentro de nós todos os dias, mas as que renascem são infinitamente mais felizes. Cabe uma miríade de vidas dentro de uma mulher. 

a despeito dos clamores pelo meteoro

há anos-luz
tudo virou pó
e foi engolido
por um buraco negro
sem pathos nem lirismo

mas o  poeta
tal qual a Terra
os planetas
o Sol
as galáxias
e o Universo
segue sua órbita



curva

estou condenada
à esta curva
entre as omoplatas

receber abraços
não parece reeducar
o traço do meu corpo

anunciaram uma lua obscura
e uma paixão gratuita
mas nem mesmo o amor
e o apreço vaidoso
que  me dedico  me basta

de novo essa longa madrugada
costurando os cortes da falta
que a vida me desferiu
eterno buraco de bala

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

ainda ontem eu tinha uma casa arrumada

parece um sorriso
mas apenas porque as roldanas
que erguem as 32 pedras
das ruínas do meu coração
são invisíveis



domingo, 13 de novembro de 2016

Longe demais

aqui onde eu guardava
derradeiras certezas
debaixo do seio direito
uma lâmina invisível
procede o corte
longe demais da 
ponta de seus dedos
te desejo

sou dessas raízes doces
que esperam ser amadas
sem ser arrancadas

quem negaria a beleza 
de uma raiz
sonhando ser barco?

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

relevo

hoje pela manhã toquei na testa
aquele relevo indelével
marca da violência do primeiro casamento
(não deveria chamar casamento
o que nos desintegra)

de tudo me lembro de por
sempre a mão em seu peito, antes
um ato reflexo de sustentar a proximidade
a partir do toque
e por fim, num esforço
para manter a distancia segura

na mudança saímos, eu
com alguns móveis, eletros
um vidro de biscoito e um filho
você com uma máquina de escrever
e uma bicicleta